O Desencantamento do Mundo

A negação das esferas supra-sensoriais da vida e as mudanças de narrativa

26/08/2021In Blog - IRIS13 Minutes

A organização de toda sociedade é reflexo de uma narrativa. De um conjunto de imaginários, significados, aspirações coletivas, ideais compartilhados e sistemas de acordos que compõem uma história. São mitologias sociais que dão origem à ordem material da vida. Segundo a pesquisadora contemporânea entre biomimética, decolonização e regeneração Anna Denardin, as narrativas “equivalem a algo como o tecido maior no qual tecemos o fio de nossas próprias biografias, enquadram nosso senso de identidade e fornecem uma espécie de modelo de como devemos nos comportar, o que devemos valorizar e quem devemos aspirar a ser. A narrativa atua como um filtro da realidade: nós nunca apenas percebemos o mundo, nós o interpretamos.”

As grandes viradas da história da humanidade foram marcadas por profundas mudanças de paradigma, que dizem respeito aos valores, crenças e subjetividades compartilhadas por um coletivo, que dá sustentação à toda estrutura prática da vida. As mudanças nas condições materiais da existência foram sempre acompanhadas de uma transformação do campo simbólico, do pensamento e nos ideais expressos. Os grupos dirigentes possuem não somente o domínio sobre meios de produção material, mas sobretudo da produção espiritual. Segundo Engels e Marx,

as ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação. (ENGELS e MARX, 2007, p. 47).

Ou seja, as estratégias empreendidas para atender as necessidades humanas, a arquitetura social de um regime político, seu modelo de governança e processo decisório, o pleno funcionamento de uma engenharia econômica, as engrenagens escolhidas para produzir o abastecimento desse sistema, os contratos estabelecidos (conscientes e inconscientes), os comportamentos aceitos, tudo o que é visto no mundo visível é reflexo do mundo simbólico, invisível.

A passagem da Idade Média para a Idade Moderna foi uma dessas disrupções paradigmáticas que afetou todas as dimensões da vida do cidadão europeu no século XVIII e, posteriormente, de todo o planeta. Originada pela ascensão do pensamento científico, esse processo provocou uma renovação nas concepções filosóficas da humanidade e na interpretação de sua existência. Foi um processo onde os princípios religiosos, configurado por uma representação social baseada em uma ordem divina hereditária e autoritária, foi substituído por uma visão de mundo baseada na razão objetiva instrumental. A Revolução Francesa, considerada um marco histórico entre essas duas eras, ilustra a erupção inevitável de um movimento que há muito tempo estava sendo tecido através da visão de mundo iluminista. A articulação prática desses ideais já estava em plena efervescência, ainda que de forma dispersa, entre grupos burgueses mobilizados em empreender seus novos modelos de organização social, política, econômica e cultural através da eclosão de movimentos à partir do século XVII, como a Revolução Americana (1776), Inglesa (1779), Irlandesa (1782), Holandesa (1783), Belga (1787). A Revolução Francesa de 1789, apesar de ter sido apenas um exemplo entre tantas outras, é considerada um ponto de inflexão por ter sido uma das mais dramáticas, e por instaurar na França, uma das maiores potências mundiais da época, um novo regime de acordos que, posteriormente, seriam propagados para o mundo inteiro. (HOBSBAWM, 1977, p. 62)

A emergência do nacionalismo foi um fenômeno fundamental nesse processo, em que os Estados passaram a fomentar e incorporar uma noção de identidade coletiva capaz de legitimar o seu poder e autoridade. Para erguer um sistema social onde houvesse laços de pertencimento a uma entidade política centralizada, era necessário criar uma base simbólica comum entre os membros integrantes – chamada de “comunidades imaginadas” pelo autor estadunidense Benedict Anderson. Segundo ele, a Nação é um exemplo de uma comunidade socialmente construída, que não se baseia em relações diretas, mas no reconhecimento de um vínculo dos indivíduos com um grupo específico (ANDERSON, 2006). Essa sustentação subjetiva do Estado passou a guiar cada vez mais as decisões estratégicas dos dirigentes, que gradualmente passaram a atender aos interesses particulares de seus territórios baseados não mais em uma identificação espiritual com as representações dinásticas, mas atuando em nome de uma comunidade imaginada, da ascensão de um sentimento nacional, de uma nova cultura compartilhada, alterando as forças institucionais do sistema internacional. 

Esse novo regime, inicialmente instaurado de forma mais avassaladora na França, ousava se expressar em nome de uma vontade popular, que buscava agir não em nome dos interesses particulares de uma só classe, mas de uma nova identidade coletiva, a emergente nação francesa. O governo atuava, a partir de então, em nome de Deus e do direito constitucional do Estado soberano Francês, autoridade suprema daquele território. A entrada da França oficialmente católica ao lado dos Protestantes na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) já havia sido um marco histórico nesse processo, onde o Cardeal Richelieu adotou uma postura racional que atendia aos interesses nacionais – e não religiosos da França. O diplomata e ex-conselheiro de política externa estadunidense Henry Kissinger, inicia seu livro “A Diplomacia” apontando justamente para essas mudanças de atitude ao longo dos séculos consecutivos:

Quase como se por efeito de alguma lei natural, a cada século um país parece emergir com a força, a vontade e o ímpeto intelectual e moral necessários para modificar, segundo seus próprios valores, todo o sistema internacional. No século XVII, a França, chefiada pelo Cardeal Richelieu, adotou uma abordagem moderna das relações internacionais, baseada no Estado-Nação e motivada pelos interesses nacionais como sua finalidade suprema. No século XVIII, a Grã-Bretanha introduziu o conceito de equilíbrio de poder, que dominou a diplomacia europeia pelos duzentos anos seguintes. No século XIX, a Áustria de Metternich reconstruiu o Concerto da Europa, e a Alemanha de Bismarck o desmantelou, transformando a diplomacia europeia em um jogo frio de política de poder. (KISSINGER, 1996, p. 1) .

Como se pode perceber, o pensamento teológico e religioso foi mudando progressivamente ao longo dos séculos, inicialmente marcados pela disputa entre católicos e protestantes, e posteriormente evoluindo para o conflito entre o Antigo Regime e os novos princípios liberais.

Esses embates diziam respeito a um processo de transformação ideológica mais profundo, que tocava a relação do indivíduo com a fé cristã. O abandono das subjetividades religiosas transformou a ligação do ser humano com o mundo invisível, alocando o indivíduo como o centro do conhecimento universal – característica fundamental da ordem moderna. (HEYE, 2011, p. 27). O descontentamento com os abusos e autoritarismos das instituições religiosas geraram uma reação de desprezo aos dogmas puritanos e, por consequência, uma negação às esferas supra-sensoriais da vida, por serem associadas a ilusões e superstições fantasiosas. Essa desconfiança nas esferas subjetivas gerou uma negação à cultura dos sentidos e sentimentos em geral. Esse processo foi chamado de “desencantamento do mundo”, por Max Weber, no qual houve o abandono gradual de “meios mágicos para a busca da salvação”. (WEBER, 2004, p. 96).

Essa íntima transformação afetou a noção de identidade dos indivíduos, gerando uma mudança cultural nas relações e nas práticas comunitárias, que passaram a buscar sustentação ideológica em novas instituições sociais. Passou-se a explorar outras qualidades de experiência para responder às novas demandas e aspirações humanas daquela época. A investigação por um renovado conceito de liberdade fez emergir uma nova construção de identidade individual, representada pela soberania do indivíduo, nascida entre o Humanismo Renascentista e o Iluminismo do século XX. Essa nova noção do ‘eu’, lentamente divorciada das estruturas religiosas, passa a autorizar o sujeito a protagonizar mudanças, representando um processo fundamental para erguer o projeto da Modernidade (HALL, 1992, p. 24).

A necessidade da mudança é uma reação natural ao esgotamento dos recursos presentes para lidar com as situações apresentadas. Essa grande virada paradigmática da humanidade foi revolucionária e essencial para o seu tempo, no sentido de libertar condicionamentos que eram impostos pelos sistemas medievais de conhecimento da época, inadequados para responder a realidade vigente. Segundo o filósofo científico estadunidense Thomas Kuhn, paradigma são “regras e padrões compartilhados por uma comunidade científica que dá origem a uma tradição” (KUHN, 2003). É um padrão que adquire status não por arbitrariedade, mas porque são bem sucedidos na resolução de problemas. Com o tempo, começam a surgir crescentes refutações e entrar em estágio de crise, as chamadas “anomalias”.

Assim como naquele período atingiu-se um estado de anomalia, hoje também alcançamos esse limite. Nossa atual forma de enxergar o mundo está nos aprisionando em modelos que não nos servem mais. Há um colapso civilizatório acontecendo, – e como qualquer ciclo vivo, toda a morte é o prenúncio de um renascimento.
Se a articulação mecânica da vida é reflexo de uma narrativa, nossa missão é propagar visões que fortaleçam a travessia para um novo mundo. 


ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. London, New York, Verso, 2006.

KHUN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

KISSINGER, Henry. Diplomacia. Barcelona, Ediciones B, 1996.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 11 ed. DP&A Editora, 1992.

HOBSBAWN, Eric. A Era das Revoluções 1789-1848. Edição Revista, Paz e Terra, 1977

HEYE, Thomas. “Sem Reforma, sem Westfália? Religião, Soberania e o Sistema Internacional Moderno.” Revista Brasileira de Estudos Estratégicos, vol. I, no. 4, 2015, p. 397. Academia, https://www.academia.edu/49250274/Sem_Reforma_Sem_Vestf%C3%A1lia_Religi%C3%A3o_Soberania_e_o_Sistema_Internacional.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 3.ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. 6 ed., São Paulo, Companhia das Letras, 2004.