Uma Crise de Sentido
A dimensão sutil e simbólica como estratégia prática para lidar com os principais desafios contemporâneos
A condição que diferencia o Homo Sapiens de qualquer outra espécie do cosmos é a capacidade de transmitir informações sobre coisas que não existem. Essa habilidade nos permitiu alterar toda a paisagem física e geológica do planeta ao longo dos últimos milênios através de uma gigante rede de cooperação entre pessoas que não necessariamente se conheciam. Apesar de muito ter se acreditado que caminhávamos para um horizonte progressivo de melhoria na qualidade de vida dos povos, as atuais crises climáticas, a perda da biodiversidade e as desigualdades sociais, entre muitos outros sintomas, evidenciam a falha dos atuais sistemas em responder às verdadeiras necessidades humanas. Apesar de manifestadas nas mais diversas áreas da vida social enquanto crises ambientais, políticas, econômicas e culturais, buscamos investigar as raízes mais profundas do que se apresenta enquanto um colapso civilizatório.
Compreendemos este colapso como uma crise de sentido existencial.
Isso pede um olhar para o nosso pensamento, nossa cultura, nosso inconsciente coletivo, nossas memórias e as histórias que compartilhamos sobre o mundo e a humanidade.
Desejamos investigar coletivamente as origens filosóficas da atual concepção humana acerca de sua própria natureza, bem como da sua relação com o ambiente natural, que implica na forma como nos relacionamos uns com os outros.
A grande virada da Idade Média para a Era Moderna representou mudanças no pensamento europeu que, posteriormente, foi exportado para todo o mundo através dos sistemas coloniais. A expressão da modernidade produziu um discurso totalizante e unificador através de um projeto sociocultural progressista de emancipação civilizatória que afetou completamente a construção identitária do indivíduo moderno.
A pós-modernidade, enquanto um movimento de reação a esta metanarrativa, buscou a heterogeneidade enquanto força libertadora de um falso discurso universal. Ao denunciar essa razão abstrata e a narrativa emancipadora apoiada na tecnologia e na ciência, garante novos pressupostos psicológicos quanto à personalidade, à motivação e ao comportamento. Evidencia-se, entretanto, que apesar de fortalecer grupos marginalizados, tal expressão gerou uma fragmentação nociva para o tecido social e não foi capaz de reformular o núcleo do sistema vigente, visto que não houve nenhuma reestruturação radical no modo de produção exploratório da Terra, na distribuição de capital e no arranjo social.
Detectamos a necessidade de um novo discurso cultural que busca uma união humana – visto a urgência de uma cooperação em massa para lidar com as grandes crises globais. Vemos no Bem Viver* um caminho promissor para a construção de uma nova era paradigmática.
Buscamos na dimensão sutil e simbólica uma estratégia prática para lidar com os principais desafios contemporâneos. Isso implica em uma reconexão do ser humano com camadas mais sutis da existência, que nada tem a ver com a religiosidade, mas por um sentido mais profundo da vida, que percebe uma interconexão, interdependência e inter-relação subjacente entre tudo e todos com o intuito de regenerar as feridas da separação.
A morte exponencial dos sistemas vivos da Terra escancara a urgência da construção de novos sistemas. Estamos em uma era de transição planetária onde uma profunda mudança de valores já está acontecendo. Os eventos disruptivos que têm se apresentado diante de nós estão demandando novas percepções, habilidades e um novo tipo de atitude social. Como diz Albert Einstein, “não podemos solucionar um problema com o mesmo estado mental que o criou”. Lidar com cenários imprevisíveis promove reações igualmente inesperadas, então como mobilizar forças a favor de um movimento de transformação que promova a regeneração diante de tantas mortes, e não acentuar ideologias de destruição e separação?
A complexidade que envolve tal mudança muitas vezes nos mantém em um estado de paralisia e impotência, por isso uma mudança de pensamento se faz fundamental, pois ela implica, por si só, em uma mudança de comportamento.
O principal ingrediente deste processo é compreender que os grandes males da sociedade não estão alheios a nós, mas internalizados na nossa forma de ser e perceber o mundo. Está impresso no entendimento do que é a realidade, portanto permeia as nossas histórias e intimidades pessoais. Há um sistema de valores cultural introjetado nas camadas mais profundas do nosso inconsciente, e isso exige a responsabilidade e resiliência de cada um de nós para realizar uma pesquisa em si a serviço da transformação coletiva.
Investigar as camadas mais profundas da existência não é uma tarefa fácil e nem simples, mas é a única saída possível para realizarmos as grandes transformações do nosso tempo. Para isso, precisamos de coletivos que compartilhem um alto grau de confiança para sustentar comunidades de aprendizagem que sejam capazes de viver sob novas narrativas sociais. Estas têm, por fim, o objetivo de dar origem a novos regimes de acordos gerais, não baseados no lucro, na individualidade e na competitividade, mas na cooperação, coletividade e compartilhamento de bens materiais e imateriais.
Refletir sobre os dispositivos invisíveis que regem a ordem material do mundo se faz fundamental para criar um novo regime de acordos sociais e planetários. Investigar o que está por trás de nossas ações e motivações é o primeiro passo para promover uma mudança mais efetiva, pois o processo de tomada de consciência oferece autonomia para interromper ações automáticas. A proposta em construção do Bem Viver enquanto horizonte utópico e estratégia empírica visa ser um recurso referencial para ajudar-nos a navegar por essa travessia paradigmática que se apresenta.
IRIS veio contribuir para a construção de um novo discurso cultural que reavalia o domínio sobre a natureza, a construção social do que é considerado “mal” e da narrativa do inimigo, transcendendo visões puramente técnicas e materialistas sobre o debate, e ampliando-o para dimensões mais filosóficas e holísticas. Ao contrário de perceber esta como uma estratégia que nos distancia da realidade, vislumbra-se nela uma tática eficiente, pois garante parâmetros para ações locais cotidianas, bem como para a coordenação de mobilizações globais.
Responder ao chamado coletivo de nosso tempo envolve a convivência intrínseca de ontologias distintas, a construção de uma interculturalidade que aponte para alternativas ao desenvolvimento progressista e a edificação de arquiteturas de conexão capazes de acessar camadas mais sensíveis da nossa experiência – equilibrando o bem-estar humano com a sustentabilidade. Nosso intuito não é o de oferecer respostas, mas de ampliar nossa visão para um diálogo mais amplo e horizontal possível. O convite é transgredir a imaginação do que acreditamos ser possível e, assim, regenerar a poética da existência que sustenta toda a organização prática da vida.